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O Natal a partir de um mito Bororo

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Uma das realidades proporcionadas pelo Espírito Santo em nossa Igreja é a inculturação, ou seja, o diálogo respeitoso entre as culturas, no qual cada uma reconhece elementos concordantes entre si e os partilham. Um dos Bakaru-doge (mitos) da Cultura Bororo é o da primeira aparição dos espíritos Meri e Ari. Pretendo analisar sucintamente alguns pontos entre este mito e o Natal Cristão. Conto, a seguir, resumidamente o Bakaru.

Adugo Edu, andando pelo mato, viu uma picada nova que logo o fez imaginar ter sido ser aberta por algum ser extraordinário. Seguindo a picada, ouviu sons de alegria. Chegando perto e ouvindo os sons ainda mais altos, sentiu medo e voltou para sua aldeia. Relatou tudo ao seu pai, Bakoro Kudu, dizendo-lhe: “Meu pai, creio que encontrei alguns espíritos e quero que sejam meus”. Bakoro Kudu, porém, lhe disse: “Não. Eles me pertencem”.

Imediatamente, seguindo pela mesma picada e se orientando pelos sons de alegria, chegaram ao lugar onde encontraram dois magníficos espíritos. Correram a eles e lhes ofereceram alguns charutos, os quais foram logo aceitos. Depois do contato amigável, perguntaram: “Que espíritos são vocês? Como se chamam?” Responderam: “Somos os irmãos Meri ou se quiserem Ari”. O espírito Meri ostentava um lindo Pariko (cocar) com penas vermelhas; o seu irmão, outro Pariko, com penas amarelas. Cada um tocava instrumentos específicos e cantavam diferentemente, embora repetissem literalmente o outro.

Muito contentes, Adugo Edu e Bakoro Kudu voltaram para a aldeia após o relevante encontro. O primeiro continuava a insistir: “Os espíritos são meus, pois eu os descobri!” Mas seu pai Bakoro Kudu lhe disse: “Não, os espíritos serão meus. Mas eu lhe darei o direito de fazer uma representação em honra deles. Todos o admirarão. Se, pelo contrário eu ficar com a representação, admirarão somente a mim e você ficará diminuído”. Assim, os espíritos Meri e Ari ficaram de Bakoro Kudu e a representação de Adugo Edu.

O Natal é o surgimento do Deus feito Homem que veio habitar entre nós. De acordo com os princípios recentes da Teologia Indígena, no mito acima, podemos identificar Jesus nos espíritos Meri e Ari. Mas como isso acontece, se são dois, enquanto Jesus é apenas uma pessoa? A resposta deve ser encontrada nos diversos modos através dos quais Jesus já se revelou em outras culturas. Trata-se do princípio da unidade dentro da dualidade. Vários antropólogos constataram que, de acordo com os dois hemisférios de nosso cérebro, temos essa tendência que se torna lei cultural. O mesmo se pode dizer de visões xamânicas, nas quais sempre aparecem duas serpentes entrelaçadas lembrando as duas linhas do DNA humano. Outro exemplo acontece na Cultura Xavante: os Irmãos Parinai’á alternam ações sozinhos ou em dois. Não é possível aprofundar exaustivamente tal tema agora. Basta entendermos que Deus preferiu não se manifestar em apenas uma pessoa. Nas culturas, há casos de manifestações trinitárias, como a cristã e até mesmo quatrinitárias. Tudo indica que Deus gosta muito de ser um Deus comunitário.

Meri e Ari são um dos modos através dos quais Jesus se encarnou entre os Bororo. Há outros que não serão mencionados nesse texto. Meri e Ari emitem sons de alegria e produzem alegria nos que deles se aproximam. São belos e os seus enfeites são magníficos. Vestem-se como a natureza se veste. Os charutos que aceitam de Adugo Edu e de Bakoro Kudu, longe de ser um vício, são um modo de elevação, de contemplação de Mairéboe, pai de todos os espíritos. Até hoje os Bororo costumam acender um cigarro para os Aroe (almas ou espíritos) em momentos de necessidades ou grandes decisões.

Eles são espíritos que se identificam, que têm nome, tal qual Jesus o fez ao longo de sua vida, até ao momento maior do mistério pascal, quando revelou toda a sua pessoa e a sua missão entre nós. Meri e Ari, individualmente ou dualmente, de igual modo aparecerão junto aos Bororo em outras ocasiões, orientando, ensinando e agindo, até ao momento derradeiro no qual também sobem aos céus.

Na Cultura Bororo ser dono de algo significa ser possuidor da força, do poder de determinado elemento da natureza ou de importantes funções. Toda a natureza está distribuída entre os Bororo, de acordo com os oito clãs que compõem as suas aldeias circulares. Assim, vemos os Bokodori como donos dos tatus-canastra, os Apiborege com donos da palmeira acuri, os Baadojeba exercendo o papel de chefes, etc. Não se trata de uma posse egoísta, mas sempre com sentido comunitário. Quanto a representar, os Bororo costumam usar a expressão Aroe-Etawujedo (representação). Significa ajudar a tornar presente um espírito ou elemento cósmico durante a realização de um ritual. É um momento no qual também acontece uma dualidade: temos a parte artística, fortemente acentuada pelos coloridos enfeites, ao mesmo tempo em que os espíritos vêm fazer comunhão, num momento híbrido no qual o natural e o sobrenatural se encontram, com o fortalecimento dos primeiros. A representação não é teatro ou simulacro; são vidas humanas se encontrando com seus deuses.

Nos sacramentos e sacramentais fazemos comunhão com Jesus usando símbolos. Estes, uma vez ressignificados e agindo eficazmente, passam a comunicar a graça santificadora à comunidade, Povo de Deus. Comunidade que, por sua vez, é multicultural, com símbolos diversos em sintonia dentro da mesma dinâmica onde se torna possível chegar à comunhão.

Jesus Cristo, Meri e Ari continuam, sob diversas formas, presentes e atuando em nossos tempos. Saibamos, a exemplo de Adugo Edu e Bakoro Kudu, encontrar a picada até onde se encontram (certamente, nos surpreenderemos!) e com eles interagir. Ofereçamos a eles o melhor charuto que os deixarão muito contentes: o da sintonia com as lutas e organizações populares, principalmente com a Causa Indígena.

Pe. Eloir Inácio de Oliveira, sdb