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Artigo em memória aos 45 anos do martírio do P. Rodolfo e Simão Bororo

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Memória dos 45 anos do Martírio.

Chegou o mês de julho. E em Meruri — a entranhada aldeia dos índios Bororo — fez-se uma histórica “aliança no sangue”, entre o índio e a missão.

“Às 11 horas da manhã do dia 15 de julho, a Colônia Indígena de Meruri, no Leste mato-grosssense, foi atacada por 62 fazendeiros armados, cujas terras estão dentro da reserva Bororo, que começara a ser demarcada pela funai na antevéspera. O Padre Rodolfo Lunkenbein, missionário salesiano, de 37 anos, e o índio Simão Cristino foram mortos; outros quatro Bororo ficaram feridos. Um dos atacantes também morreu, atingido por uma bala perdida de seus próprios companheiros.” (Movimento n.° 56, julho de 1976 — os grifos são meus.)

Aquele mesmo dia 15 eu tinha escrito uma carta ao Padre Rodolfo e a seu companheiro, o bom Padre Ochoa, colocando em letra maiúscula o nome de Rodolfo, por uma inconsciente distração que viria a ser profética. Aquele homem alemão, generoso, alto de corpo e de espírito, puro em seus olhos de criança, azuis, e aberto sempre em sorriso, seria o primeiro a selar os compromissos assumidos na I Assembleia Missionária Indigenista de Goiânia.
O missionário já não morria matado pelo índio, como nas antigas histórias. Morria pelo índio, amado na totalidade de seu ser e de seus direitos, visto não apenas como uma alma a salvar. Morria pela Terra do índio que estava sendo invadida, demonstrando assim saber muito bem como — segundo o Parlamento índio de San Bernardino, de outubro de 1974 — “o índio é a própria terra”.
E o índio — neste caso o doce e fiel Simão, aquele que “nunca zangava” — morria pelo missionário. “Só para acudir o padre”, como dizia o velho cacique Eugênio — Aidji Kuguri —, Simão morria e outros quatro Bororo ficavam feridos. Só para socorrer o padre: “de mãos limpas, de corpo limpo”, que “nem canivete eles tinham consigo”.
Eu fui a Meruri, com Leo, três dias depois. Nunca mais esquecerei aquele morro nítido no azul, as grandes árvores ondulando, a água muda e as folhas revoando, a praça, quase colonial, ao sol, e seu improvisado sino, as missionárias salesianas em branca desolação e os índios todos cantando naquela missa que celebramos pelos Mártires, com um lamento índio que emocionava profundamente, durante a comunhão.
Pus toda a minha alma naquela missa, palavra. E entreguei ao cacique Eugênio o báculo — meio borduna, meio remo — de pau-brasil que os índios Tapirapé me haviam ofertado em minha sagração episcopal. Com isso, eu dava aos Mártires, aos Bororo, à missão salesiana de Meruri, o melhor tesouro que eu tinha.
Aquela noite escrevi no “livro de Presença” da missão:

“Esta tarde celebramos, com a Morte gloriosa do Cristo, a morte gloriosa do Rodolfo e do Simão, o sangue da Teresa, do Lourenço, do Zezinho e do Gabriel; a angústia e a solidariedade do Ochoa, dos Bororo, dos missionários salesianos de Meruri!
15 de julho é uma data histórica na História da nova Igreja Missionária. Rodolfo e Simão são mais dois mártires, perfeitos no Amor, segundo a Palavra do Cristo: o índio deu a vida pelo Missionário; o Missionário deu a vida pelo Índio.
Para todos nós, índios e missionários, este sangue de Meruri é um compromisso e uma Esperança.
O índio terá terra! O índio será livre! A Igreja será índia! Com o abraço da Igreja indígena e sertaneja de São Félix…”

Escrevi também, para a solene missa fúnebre da catedral de Goiânia, uma Ladainha Penitencial, que reproduzo aqui porque expressa o que sinto sobre a culpa coletiva, a obstinada ignorância, que nos compete reparar, como Sociedade e como Igreja, em nosso comportamento para com os Povos Indígenas:

— “Por todos os pecados da antiga e da nova colonização que vêm esmagando, durante séculos, os povos indígenas da nossa América, nós vos pedimos perdão…
— Pelos pecados da própria Igreja, tantas vezes instrumento do antigo e do novo colonialismo…
— Pelo orgulho e ignorância com que desprezamos a cultura dos povos indígenas, em nome de uma civilização hipocritamente chamada crista…
— Pela espoliação das terras do índio e a destruição da natureza em que ele vive, causadas pelo latifúndio e pelos interesses das grandes empresas nacionais ou multinacionais, ou pelo turismo desrespeitador…
— Pela desumana violência com que pretendemos transformar as comunidades indígenas em novas vítimas de nossa sociedade de lucro e de consumo, a pretexto de urna ilusória integração…
— Pela nossa incapacidade de descobrir ‘as sementes do Verbo’, as raízes do Evangelho, na vida simples e comunitária dos povos indígenas…
— Pela falta de solidariedade da consciência nacional, pela falta de honestidade ou de eficiência das autoridades responsáveis, pela omissão da Igreja, por todos os pecados do povo brasileiro contra os direitos dos nossos irmãos índios…
— Por pretendermos tantas vezes isolar o problema indígena do problema global de todos os marginalizados do País, na cidade e no campo…
— Pela falta de vocações dispostas a se encamar, como Jesus, na cultura, no martírio e na esperança dos povos indígenas…
— Pelos que mataram os nossos irmãos Simão e Rodolfo, pelos que acobertaram este crime, por todos os que matam, dia a dia, o índio, nosso irmão…
— Por nossa falta de esperança neste mundo novo que devemos construir, onde todos os povos seremos livres e irmãos, sendo o vosso Povo…
— Perdão, Senhor, perdão!”

D. Pedro Casaldáliga (in memorian) , Creio na Justiça e na Esperança

 

* Este artigo/relíquia histórica foi postado hoje pela Sra. Eunice Dias de Paula, na época membro do CIMI-regional Mato Grosso, hoje aposentada.
A ela nosso agradecimento.